Edição 78 ● Edição Especial ● Maio de 2020
Os arquivos em tempos de pandemia
Desde dezembro de 2019, quando ganhou força, a pandemia provocada pelo novo coronavírus já infectou mais de 3,6 milhões de pessoas e ceifou quase 260 mil vidas mundo afora. Só na América Latina, onde os efeitos da doença ainda não são totalmente conhecidos, mais de 15 mil pessoas já morreram. Por sua magnitude global, trata-se, indubitavelmente, de uma das maiores crises já provocadas por uma doença em todos os tempos.
Nada será como antes, dizem os especialistas. Além das irreparáveis perdas humanas, a COVID-19 trará impactos socioeconômicos que ainda não podem ser mensurados. Em março, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento previu que as perdas provocadas pela pandemia devem superar a cifra de U$ 1 trilhão só neste ano.
Os efeitos concretos da crise para os arquivos e os arquivistas brasileiros devem refletir este cenário. Assoladas pelo "austericídio" estatal dos últimos três anos, as instituições arquivísticas deverão atravessar os próximos anos com ainda mais restrições orçamentárias. Como resultado, devem arrefecer as novas contratações e a realização de projetos. Para que possam operar em condições adequadas, os arquivos necessitam de investimentos contínuos. Entretanto, é difícil imaginar que haverá condições para tais investimentos no "novo normal" do porvir. Ao menos por enquanto.
Para os arquivistas, os tempos também são incertos. A pandemia deve atrasar a formação de novos profissionais, uma vez que a maior parte das instituições de ensino segue com suas atividades suspensas. Ainda em relação ao âmbito acadêmico, o que se percebe até agora é que 2020 está praticamente perdido no que diz respeito à realização dos eventos programados. Do ponto de vista do mundo profissional, desemprego, incertezas e a debacle econômica como um todo também preocupam.
Tudo isso é menos importante enquanto vidas estiverem em jogo. Não há "lado bom" em uma crise desta magnitude, mas ela pode nos ensinar algumas valiosas lições. Nunca falamos tanto na importância da ciência, da informação, do conhecimento sobre o passado e o presente como formas de exterminar o vírus que nos inquieta e mata. Nunca necessitamos tanto dos arquivos de ontem e de hoje.
Por tudo isso, nesta edição especial, preparamos um importante apanhado de debates, definições e publicações sobre o mundo arquivístico durante e depois da pandemia. Parte preponderante deste material provém da Europa, onde a contaminação pelo novo coronavírus está perdendo força – e onde as instituições estão voltando ao "normal". É de lá, por enquanto, que chegam as melhores notícias e alguns exemplos a serem seguidos.
O patrimônio arquivístico e o dever de documentar durante a pandemia
O Conselho Internacional de Arquivos (ICA), associado a diversos organismos internacionais, publicou dois importantes documentos sobre a importância do patrimônio arquivístico e o dever de documentar durante a pandemia.
O primeiro documento, intitulado "Convertendo a ameaça do COVID-19 em uma oportunidade para um maior apoio ao patrimônio documental", reforça as condições estabelecidas em 2015, pela UNESCO, a respeito da importância da preservação do patrimônio. Basicamente, o manifesto reforça quatro pontos: a necessidade de ampliar a cooperação nacional e internacional para preservar e tornar acessível o patrimônio cultural arquivístico; o dever dos Estados em aumentar o investimento público na área; a urgência de amplificar o acesso do público aos arquivos, inclusive através do uso de novas tecnologias e; a preocupação de que sejam mantidas e aprimoradas as medidas para a formulação de políticas que assegurem a preservação da memória e da história, inclusive no que diz respeito à pandemia.
O segundo documento intitula-se "COVID-19: O dever de documentar não cessa em uma crise, torna-se mais essencial". Importantíssimo do ponto de vista arquivístico, o manifesto defende que os governos redobrem esforços para manter seus registros adequadamente arquivados, sobretudo em tempos de trabalho remoto e uso desenfreado de novas tecnologias. O documento defende, também, que os arquivos sejam apoiados, pois provém deles a informação necessária para lidar com a crise. Por último, salienta ainda que os acervos arquivísticos de empresas extintas neste período e registros de atividades técnicas, científicas e educacionais não sejam esquecidos.
A Associação Latino-Americana de Arquivos (ALA), através de seu Grupo de Trabalho sobre Arquivos e Direitos Humanos, também publicou uma importante reflexão sobre o momento. Basicamente, o texto enfatiza as iniciativas do ICA.
O mundo dos arquivos pós-pandemia
Enquanto a América Latina se prepara para o momento mais crítico da pandemia, na Europa começa a se estabelecer o chamado "novo normal". Nesta semana, depois que o registro de casos de novo coronavírus assinalou uma redução no número de novos contaminados, vários países começaram a flexibilizar suas atividades. Em alguns deles, novos protocolos foram preparados e contemplam, inclusive, instituições arquivísticas.
Na Espanha, o Ministério de Cultura e Esporte lançou um plano de transição que prevê a reabertura dos arquivos. A iniciativa prevê a ampliação das consultas remotas e a restrição nas pesquisas presenciais, além de medidas de higiene e uso de equipamentos de proteção.
Para auxiliar os profissionais e pesquisadores neste período de transição, a Federación Española de Sociedades de Archivística, Biblioteconomia, Documentación y Museística (FESABID) reuniu mais de 30 documentos e protocolos a respeito da COVID-19, uma preciosa produção que mostra o empenho dos profissionais espanhóis não apenas em assegurar a segurança e o funcionamento das instituições e seus profissionais, mas também de demonstrar sua importância.
Em Portugal, a Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD) também defendeu a adoção de medidas específicas para a reabertura do atendimento presencial nos arquivos.
A propósito das especificidades que o mundo pós-pandemia exigirá aos profissionais de arquivo, a conservadora Fernanda Mokdessi Auada traduziu para o português o documento "Como proceder com os livros contra o risco de contágio da COVID-19", publicado originalmente por Arsenio Sanchez, da Biblioteca Nacional de España. Embora seja dirigido especialmente aos bibliotecários, a maior parte das medidas sugeridas serve também aos arquivos.
Enquanto isso, no Brasil...
Imerso em uma incessante crise política, desorientado pela subnotificação sistemática e assolado pela desinformação e pelo obscurantismo, o quadro brasileiro é grave e parece se refletir também na arquivística. Do ponto de vista do isolamento social, necessário para o combate ao vírus, a área tem feito seu esforço: a maior parte das principais instituições arquivísticas brasileiras está fechada ou atende remotamente e aulas e eventos também foram suspensos ou cancelados.
No entanto, para além da paralisação de atividades, ainda é tímida a ação da arquivística e da Arquivologia brasileiras nesta crise. Até agora, nem o Arquivo Nacional, nem as instituições arquivísticas estaduais publicaram protocolos de atendimento ou enfrentamento da pandemia. Por parte das universidades, os avanços também foram bastante restritos, um cenário que se reflete também no campo do associativismo.
Há, entretanto, iniciativas em áreas afins e que merecem destaque. Na semana passada, o Observatório de Gestão Pública da Informação (OBGI), que conta com a participação de arquivistas, lançou o primeiro informe do projeto "COVID-19: acesso à informação pública", que visa monitorar pedidos de informação sobre políticas e procedimentos relacionados ao novo coronavírus dirigidos ao governo federal e suas respostas, por meio da Lei de Acesso à Informação. A iniciativa, realizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra um dos caminhos a serem seguidos pela área: o do monitoramento da eficácia das políticas públicas em tempos de crise.
Esta edição especial do Giro da Arquivo tentou sintetizar um bocado das muitas iniciativas que, pelo mundo, tentam compreender o cenário atual pelo prisma da Arquivologia. Infelizmente, não há muito a dizer sobre o Brasil, ao menos por enquanto. É preciso, porém, que tenhamos calma. Em tempos sombrios, é cada vez mais difícil concatenar ideias, produzir, escrever, sistematizar ações, enfim, ser útil. Daqui, torcemos para que o quadro mude. E tentamos fazer nossa parte.
Por ora, mais importante que tudo, o fundamental é combater o vírus que nos persegue e mata diariamente, cada vez com mais força. Por isso, vale reforçar o mantra destes tempos estranhos:
Fique em casa;
Lave as mãos e higienize os produtos provenientes do comércio;
Resguarde sua sanidade física e mental;
Informe-se pelos meios confiáveis e profissionais;
Cuide-se. E cuide também de quem você ama.
Quanto mais nos protegermos, mais cedo voltaremos à vida de que gostamos.
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